Saio ou não saio? Fiquei na dúvida. Hora da contabilidade. Contra: 1) o céu do domingão estava cinza, com cara de nenhum amigo; 2) tinha que corrigir uma porrada de provas; 3) estava esfriando. A favor: 1)o cara da oficina tinha trocado o cubo da bike, estava um tesão pedalar; 2) parada nova no pedaço, um concurso de foto cujo tema era: crack, esporte e cultura – teria que dar uma volta pela cracolândia pra ter alguma ideia do que poderia fotografar. Placar: 3 x 2.
Venceu o tesão. Venceu a chuva. Dez minutos depois de ter colocado a bunda no selim, cai o toró anunciado. Estava no Largo da Concórdia, focalizei uma banca de jornal com um toldo suficiente largo para me proteger da chuva. Mal encostei a bike, um carroceiro parou ali também. O seu veículo era amarelo ouro, cheio de papelão. Sentou em um dos lados da carroça e abriu uma sombrinha desmilinguida. As cores quentes se refletiram nas portas de alumínio da banca. Não tive dúvida, saquei minha máquina fotográfica e tirei umas 3 fotos. O carroceiro não gostou muito, puxei papo, perguntei como conseguira o papelão, onde venderia etc. Ao fim dessa conversa desconfiada, ele perguntou se eu poderia ajudá-lo. Me fiz de rogado. A observação de que a chuva tinha diminuído abriu espaço pro asfalto.
Esse primeiro teste já me deixou de sobreaviso. Tirar a foto exigia o contato, descer da bike e por o pé no asfalto; sacar uma conversa mole e, talvez, os trocados de ajuda. Exigências da arte: usar uma vida como figurante da perfeição. Fiz o pacto com o diabo, topei a parada. O desafio era juntar expressão artística a uma vida tão pequena. A carroça do meu amigo cheirava a cachaça e vida breve. Com os nóias, não seria diferente. Talvez não encontrasse nem o amarelo ouro. Montei rápido uma estratégia: aliciar um dos usuários que ficam perto da Avenida Duque de Caxias, procurar algum vestígio de arte nas proximidades - uma escultura, um grafite, uma intervenção artística qualquer - e, então, montar uma cena usando papo e capital. Havia um certo risco nisso, tanto material como moral, estava me sentindo um cínico.
Se fosse outro tema....Passei por mais dois carroceiros que pararam embaixo de marquises de lojas. O primeiro vestia uma capa azul royal; outro vestia uma espécie de túnica branca. Caramba, eram perfeitos para fotos. Neles havia uma certa arte, breve, mas arte, no mínimo, a de sobreviver.
A Cracolândia parecia estar deserta. Eu não acertara as coordenadas geográficas, afinal não se vê essa terra de ninguém assinalada em nenhum guia. Perto da Estação de trem Júlio Prestes, dei de cara com um rapaz magro, pele um pouco bronzeada, cabelos castanhos claros. O fato de andar de meias e sandália havaiana num dia chuvoso indicavam que encontrara o lugar. Poderia fazer contato. A aparência não reforçava o estereótipo ao mesmo tempo que sua roupa e a compleição física davam uma leve indicação de que seria usuário. “Ei, você...Será que você poderia fazer papel de você mesmo para eu tirar uma foto, ganhar um concurso e me dar bem, ah, sim tenho uns trocados aqui, são seus...de nada”. Ridículo. Esse diálogo sem arte não saiu da boca nem do pensamento. Pedalei com mais força.
Nesse momento entrei na rua. Uma rua embaçada que foi ficando mais nítida conforme eu avançava. Pessoas aos montes sentadas ou andando a esmo pareciam irriquietas. Tive a impressão de que havia sujeira por todos os lados, mas não poderia dizer que tipo de material estava jogado perto das calçadas porque naquele momento olhava fixamente para frente tentando não atropelar ninguém e ao mesmo tempo não parar. Algumas fogueiras de materiais facilmente inflamáveis produziam mais fumaça do que calor. O Haiti é aqui. Sem traço de arte, breve que fosse, pedalei rápido.
Voltei por uma rua paralela normal, não dava pistas do que acabara de testemunhar. Passei pela frente de uma escola religiosa que ostentava no muro uns mosaicos de crianças alegres. Era um trabalho um pouco tosco, mas diante do que vi, já servia como medida de arte. Click. Uma foto se formou no negativo da minha cabeça: o menino do crack ao lado da criança da escola. Ele encostaria costas, braços e mãos no muro, deixando uma das pernas flexionada de tal forma que o pé se apoiaria na parede. Ficaria de cabeça baixa para não ser reconhecido. Haveria nessa figura algo de grandioso e ao mesmo tempo dolorido. O contraste faria o resto e, enfim, haveria arte se alimentando daquele breve momento de vida.
Foi a única “foto” que tirei sobre o tema.
Por problemas técnicos e materiais, acho que não vai pro concurso: eles querem fotos em papel dimensão 20 x 25 cm. Paciência. Trouxe a do carroceiro. O amarelo ouro ainda me encanta. Grande estilo.
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