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Foto do escritorFernando Andrade

De volta para o futuro (setembro de 2016)

Devo confessar, tenho saído de bike, contudo, o “perdigão” aqui, meio a contrabando, perdeu a pena e, ultimamente, tem ganhado somente a pena do viver. É galera, sobreviver está difícil, viver impossível, escrever então nem se fala...

O jeito era segurar o pensamento para não voar alto demais e se contentar com o que se tinha pra ontem, ou melhor, o que se tinha para domingo retrasado. Então tá, pedalei forte rumo a Itaquera, por uma dessas modernosas ciclovias. Durante boa parte do trajeto, não havia muito o que observar. A via espremida entre radial e muros do metrô oferecia ao ciclista somente a monotonia da pista vermelha, interrompida, de vez em quando, por um outro ciclista desavisado pedalando na direção contrária. A diversão até chegar a Artur Alvim foi sentir o vento no rosto e olhar insistentemente para o velocímetro tentando manter aqueles números teimosos num patamar acima de 20km/h.

Para mim, esse trajeto tem cheiro de naftalina, sempre me lembro das pedras e do solo barrento que conheci na infância e que agora jazem em paz embaixo das ruas asfaltadas de Alvim. Ressentido, esse bairro me nega os mimos antigos: o campinho de pelada virou terminal de ônibus; a lojinha de bugigangas que encantavam meus olhos infantis espichou, cresceu virou um prédio sem qualquer elegância; o aviso sonoro da passagem de nível rouquejou depois que o cruzamento da rua com a linha de trem foi fechado e o fluxo de carros foi desviado viaduto abaixo.

Deixando para trás o bairro da minha infância, vejo emergir imponente a arena Corinthians. Conforme a bike avança o estádio vai se descobrindo para a vista. Destoa dos prédios da Cohab que pululam sempre iguais na margem direita da Radial. Visto dessa forma, o estádio parece um daqueles transatlânticos de luxo ancorado no feiúra do caís. Mesmo assim, o observador mais atento pode notar traços de que à Arena começa a sucumbir ao seu entorno. Filetes de manchas cinzas vão encardindo as placas brancas que recobrem sua fachada. As promessas de futuro, construídas na mesma época em que a Arena acenava para Copa do mundo, se tornaram rapidamente um “museu de grandes novidades”. Outros sinais insinuam que o futuro ou não chegou ou não era o da terra prometida: o tremor da bike é sintoma da ciclovia esburacada; o sono do mendigo dormindo enquadra velhos problemas em vias novas; e o comércio não revela nada, nem prosperidade.

Uma merecida ladeira se abre para mim. A visão agora é outra: espaço amplo, sem comércio à vista, sem prédios da cohab. Espalham-se pelo vale construções de concreto –Fatec, estação do metro e um viaduto - misturadas a uma rede mirabolante de bifurcações e retornos. Embalado pela inércia e aproveitando os sinas verdes, cruzo a radial e sigo contornando o que parece um enorme platô, onde somente um circo mambembe aproveita o espaço para estacionar de forma imemorial. Quase ia passando direto por esse fenômeno anacrônico, quando meu senso de observação me deu um repelão: como assim deixar barato uma coisa dessas? Voltei subi uma rua a esquerda e uns 20 metros depois alcançava a guia rebaixada que dava acesso ao platô.

Se a Arena Corinthians parecia um transatlântico, encontrava agora um simulacro de caravela. As lonas do circo tinham as marcas das viagens e balançavam doloridamente ao sabor do vento, ostentando cores desbotadas Parecia o circo que, na minha infância, tinha sido montado no campinho em frente de casa. Na época, permitia-se expor animais de médio porte e quando eu , meus irmãos, meus primos e minha prima nos aproximamos da jaula de um dos animais, um chimpanzé avançou sobre minha prima com o furor da verdadeira saga de King Kong. De súbito, me pareceu que aquela região modernizada deixava entrever a ponta do passado que nunca saiu dali. Não era à toa que o sistema que armava a lona estava preso a estacas de ferro e a cabos de aço: o circo se agarrava desesperadamente ao chão que já não o reconhecia. Mas a grande surpresa viria a seguir.

Depois que passei no meio do esqueleto circense, cheguei a parte de trás do platô, onde jovens de cor morena se divertiam fazendo manobras radicais de moto. Era um espetáculo fora do circo e sem a graça do grande espetáculo. Parei a bike e fiquei observando. As motos eram adaptadas, amassadas e feias, preparadas para o duro equilíbrio de pilotos ousados. Acompanhei um deles que me chamou atenção. Empinava a moto até a pneu da frente sair do solo, depois passava pernas para a rabeira do veículo e apoiava os pés no bagageiro de tal forma que piloto e moto ficavam na vertical, praticamente em pé, estabilizados apenas por uma roda em movimento. Tudo isso junto e misturado parecia me dar um gran finale: os pilotos tentavam fazer o que se deve fazer nesses tempos bicudos: manter o equilíbrio a todo custo, mesmo que o espetáculo não seja belo, nem majestoso, afinal o show não pode parar.

Voltei pela lateral do circo desmontado. Três carros velhos e um caminhão, todos sofridos de uso, estavam estacionados próximos às estruturas de metal enferrujado já desmontadas. Homens de meia idade davam uma pausa no trabalho de desmontar a tenda gigante e parte do circo mostrava sua ossatura como um dinossauro em um museu natural. Homens cansados, nenhum jovem, nenhum palhaço. Até aquele momento tinha me resignado a todo esse futuro passado, mas a falta do palhaço incomodava. Alguém tinha que resgatar o humor. Não seriam os equilibristas, nem os trabalhadores, muito menos eu. Deixei escapar um sorriso envergonhado que não encontrou eco em parte alguma. Saí do platô como quem sai de uma maquina do tempo e recebe no rosto somente o bafo quente da realidade. Não me importava mais se vinha do passado ou do futuro. Pedalei.

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