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Foto do escritorFernando Andrade

Fluxos (20.02.2020- Quito)

Pois é galera, depois de algum tempo sem escrever, resolvi trilhar alguns caminhos diferentes na América Latina. Fui assim, sem lenço ou documento, mas com uma bagagem de uns 12 quilos para o Equador.

Cheguei à noite, sem condições de tomar um ônibus do aeroporto que fica longe pra caramba do centro histórico de Quito. Resultado: meu ciclo de outras vias começava de forma bem convencional, avião e táxi.

O Hostel era realmente deslumbrante e curioso. Uma construção antiga e enorme, com restaurante, uma amplíssima cozinha, lugar para shows etc. Iria dividir um quarto com outras 6 pessoas. Os beliches eram grandes e fechados nas laterais e no fundo. Havia somente uma abertura, por onde se entrava. E mesmo essa abertura poderia ser fechada internamente por um cortina balck out.

Me sentia num caixão e como todo bom cadáver poderia usufruir de uma privacidade única.

Deixemos de lado, essas questões mortuárias e aquilo que se deve a Morpheu ou Hades, bora para o primeiro passeio.

Andar de bici ou bike por Quito não foi fácil. Procurei por esse serviço e o que existia era um tour de bike com um guia...Caramba, isso seria o inferno na terra, qual biker abriria mão de andar livre sobre duas rodas, para acompanhar um rebanho de ovelhas que parava o tempo todo para ouvir alguma curiosidade sobre um ponto turístico?

Com muito custo descobri um louco com cara de paz e amor, de esquerda (gente boa), que alugava uma bicicleta chinfrim mas com câmbio. Poderia finalmente andar por Quito, poupar meus pés e castigar minhas panturrilhas. Hora de pedalar.

Comecei a explorar as vias. Muitos carros, trânsito um pouco caótico. Estava numa espécie de vale, um bairro chamado Mariscal. Minha vontade era subir nas bordas daquela cidade e vê-la lá do alto. Para isso, precisaria uma magrela mais leve e melhor, mas quem disse que não ia tentar?

Havia outro desafio: o pessoal do hostel tinha dito que não era muito recomendável ir além dos limites turísticos, centro histórico e Mariscal.

Quito é uma cidade feia e arriscaria dizer triste. O coração do Equador são os Andes, que espremem as pessoas para habitarem em encostas ou vales férteis. Quito é espremida. Casas para todos os lados até onde se pode ganhar das montanhas. Qualquer cidadão desse país tem que estar preparado para subir.

Tenho síndrome de Ninrode, aquele cara que pretendia chegar aos céus, Ok, não cheguei a tanto, nem à metade da encosta (um quarto da encosta?) e tive que fazer algo que envergonharia qualquer biker de presença, descer da magrela e caminhar.

Subi ladeiras e mais ladeiras com um grande custo e quando decidi descer afundei a mão no freio até os dedos doerem . Primeira parada: um prédio antigo e grande onde deveria contemplar a arte moderna do país. Esse Museu estava meio fora do circuito turístico tradicional e descobri por quê...Havia muitas salas...vazias. Qual era a modernidade de Quito? Havia claro. Duas instalações artísticas me chamaram atenção, uma fazia referência ao machismo outra a desterritorialização. Dois termos pós-modernos que circulam até mesmo pela Quito adormecida entre as montanhas.

Saí do Museu de arte moderna, percebendo que era o fluxo do passado que me arrastava.

Arrastado me deixei observar por uma loja de aviamentos. Você sabe o que é isso? Um lugar onde você pode encontrar coisas essenciais como zíper, linhas, agulha de costura e tecidos de diferentes cores. Um tipo de estabelecimento comercial que só tinha visto na minha infância. Mas não vi um, vi vários. Aparentemente, os equatorianos ainda compram tecidos e fazem suas próprias roupas ou as tricotam como minha avó fazia, porque a quantidade de lojas que ofereciam o produto era de espantar.

Passei pelas centenárias igrejas e confesso que fiquei impressionado com a grandiosidade das construções e com a quantidade de oratórios, capelas, catedrais etc. Havia no mínimo umas 8 grandes construções religiosas num espaço de 1km2. A religiosidade se sentia no ar, no rosto das pessoas nas vitrines das lojas que vendiam roupas para estátuas religiosas. Opa, roupas para o quê?

Parei na frente de uma. Era repleta de pequenas mantas que deveriam vestir santos domésticos. De novo, observei várias lojas desse tipo e pessoas que compravam essas pequenas indumentárias. Provavelmente, esse fiéis queriam proteger aqueles benfeitores espirituais que saberiam retribuir o cuidado de deixá-los à salvo da intempéries do clima e ainda com estilo e vaidade, algo que nem mesmo um santo dispensa. Uma paga pequena de uma roupa em troca de proteção desmedida.

Mas era no rosto dos equatorianos que, por algum motivo, intuía uma vida modesta e sofrida em que a identificação com santos dolorosos parecia fazer todo sentido. Foi uma pedalada melancólica e piedosa. Cada Igreja era um convite para um solilóquio que um biker não consegue evitar. Deo gratias.

A noite já caia e teria que entegrar a bici, como eles chamam a magrela (achei essa abreviação mais simpática e sonora do que a já conhecida “bike”). Antes, dei um giro numa rua próxima a Mariscal, onde se concentram alguns teatros, aparentemente todos públicos.

Num deles, iria haver um espetáculo de dança folclórica. Pensei em deixar a bike no estacionamento, entrar e me entregar aos ritmos de Quito e a nostalgia de uma cidade, espremida entre o aqui e agora e as benções de um divino que conservam velhas formas de viver.

Já estava atrasado para entregar a bici e, além disso, fiquei em dúvida em dar voz a uma identificação mais forte entre o biker que vos escreve e la ciudad.

Entreguei a bici no horário combinado. Definitivamente a cidade imprimira suas marcas em mim e em minhas pernas. Não se entra no fluxo do passado incólume.

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