Olá galera, pois é, de novo aos 47 minutos do segundo tempo, ou melhor, já no final do mês, estou finalmente blogando mais um texto. Como bom brasileiro, deixei para última hora, ainda bem que hoje não choveu. Antes de começar a descrever a aventura de hoje, seguem aí abaixo dois prolegómenos. Puta, que palavrão!(rs). Bem, agora, são dois. Como blog e bike também são cultura, consultei a wiki (wikipédia, já tô íntimo dessa bagaça virtual) que dizia o seguinte: prolegómeno "é um termo literário derivado de um particípio grego que significa “as coisas que são ditas antes"'. Pois é, vou parar com a palhaçada e apresentar, logo, as duas coisas que serão ditas antes de contar algo sobre a minha bikesaída de hoje.
Prolegómeno 1: Ok, acho que exagerei na última postagem. Gente, o que foi aquilo?! A postagem parecia mais um livro, e o pior, sem figurinhas....Vou tentar ser mais breve. Até porque o passeio de hoje foi curto.
Prolegómeno 2: O título faz referência à crença antiga de que os olhos seriam janelas da alma. Alguns de nossos ancestrais acreditavam que a alma, presa ao corpo, só tinha apenas a visão como forma de se comunicar com o exterior. Os olhos, como uma espécie de instrumento transcendental, iluminavam o mundo obscuro que só poderia ser entendido pelo espírito e não pelo corpo. É como se os olhos emitissem luzes para o mundo...Vamos combinar: esse povo era muito otimista, conheço muita gente que provavelmente jogaria muito mais trevas no mundo do que luz....Opa, vamos deixar de divagar....
Saída: 18h 10.
Chegada: por volta da 20h.
Itinerário, tempo, temperatura: Bem....de novo, fiz o velho circuito: Brás, Centro e Minhocão...desculpa, gente. Era o mais rápido.
Tempo bom, temperatura agradável.
A crônica (sem muita enrolação)
Hoje decidi a pauta antes de sair de casa. Algumas vezes, já tinha observado as janelas dos prédios e esse tema me parecia promissor. Há uma lei que obriga os moradores a manterem inalteradas as fachadas dos prédios. Em tese, não poderiam sequer trocar as janelas originais porque isso representaria uma modificação da estética racional de arquitetos e engenheiros que projetaram tais monumentos.
Andando de bike, pude observar como a realidade teima em alterar leis e racionalidades. Pra variar, o Brás, esse bairro quase surreal, me deu uma amostra da máquina do mundo. Uma edificação de quatro andares apresentava três diferentes tipos de janela. Nos dois andares intermediários, as janelas conservavam a madeira original, mas as cores eram diferentes. O azul do terceiro andar era mais forte; o do segundo apresentava, sem pudor, as marcas desbotantes do tempo. No primeiro e quarto andares, janelas de alumínio davam um tom de modernidade imposta, fora de lugar, como olhos jovens numa face velha. Era isso: as janelas eram os olhares dos monstros de concreto.
Olhares diferentes
Passei em frente a um edifício abandonado. As várias janelas quebradas me lembravam olhos de cegos, baços. Na volta, descendo uma rua de Perdizes, uma escola apresentava, de forma elegante, uma grande placa de alumínio que obscurecia a possível comunicação dos alunos com o mundo. Óculos escuros, impenetráveis. O edifício negava qualquer troca, fosse de dentro pra fora, fosse de fora pra dentro. Bem em frente, de forma exibida, quase como uma provocação, um restaurante, com todas as luzes e janelas escancaradas fazia questão de mostrar-se e ser visto. E foi alí, em Perdizes, que a diferença entre classes sociais e janelas se tornou evidente para mim. De forma bem mais discreta do que o Brás, Perdizes também dava um jeito de quebrar a simetria das fachadas, mas com a vergonha recatada de um bairro que deve expor sua elegância e não seus problemas. Algumas janelas apresentavam grades para evitar que o de fora entrasse; outras, redes para evitar que o de dentro saísse, saísse do apartamento e da vida.
Para dentro
Fui parar no Minhocão. Não tinha jeito. Não queria somente ver as faces de janelas, queria a alma delas. O elevado coloca o biker à altura das janelas dos moradores. Ali o olhar se inverte. Não é o concreto monstro que olha pra fora, mas o passante que, fingindo não reparar, olha pelas frestas de janelas com o prazer de voyer. Muitas janelas se negavam ao olhar invasor, mas não todas. Passei por uma janela ampla que mostrava, melhor exibia, duas mulheres sentadas na poltrona descontraidamente assistindo televisão. Não se importavam em serem assistidas. Pareciam colher nos espaços vazios do sofá, os olhares intromissores. Em outro apartamento, havia uma família de uns 8 membros que partilhavam o pão entre si e suas imagens com os curiosos sem se importarem com tamanha comunhão. Mas o que mais me chamou a atenção foi uma janela que só permitia ver pouco , muito pouco do partamento. Vi a moldura de gesso no teto. Uma moldura grossa, cara e de bom gosto. Havia também uma cortina para separar dois ambientes. Parecia de um bom gosto forçado, pois viam-se fragmentos de objetos numa combinação duvidosa: vasos, um espelho, espaldar de uma poltrona entre outros trecos. Foi aí, nessa contabilidade mobiliária que observei algo da cor laranja. Acho que era um troço qualquer do qual o morador não queria se desfazer, a janela me mostrava uma alma pesada demais com o que carregava.
Cores
Já que falei em laranja, vamos às outras cores. Um apartamento prenhe de cores, exibia uma luz verde em uma janela; luz roxa na outra. Vi uma sala toda vermelha que parecia expulsar meu olhar. É verdade que o vermelho imperava em vários cômodos que se exibiam pelas janelas, mas geralmente a cor ficava restrita a uma parede. Num desses cômodos, apareceu-me um objeto singular: uma coisa rosa que tinha dois pratos dos quais saiam objetos transparentes em forma de pêra como duas tetas, passei duas vezes diante da janela, mas havia apenas uma fresta pela qual minha imaginação entrou e saiu com essa fantasia que começa a mostrar mais a minha alma do que a do apartamento.
Fim de feira
Tive certeza de que já era hora de voltar, quando, numa ladeira que exigia muito cuidado, fui obrigado a parar atrás de um ônibus e esperar pacientemente que vários passageiros descessem. Pois, não é que desce, sem mais nem menos, um cara com um tapa-olho? Me encarou rapidamente e seguiu seu caminho. Parecia uma janela aberta outra fechada. Nesse ponto, comecei a achar que minha viagem já tinha ido longe demais.
Post, mas ainda scriptum
Quando aconteceu o mencionado acima, pensei comigo mesmo:"pronto, já tenho tudo de que preciso para blogar hoje." Ledo engano. O Minhocão me guardava uma surpresa (ae, galera, sem malícia, ok?). Já perto da praça Roosvelt, vi vários carros e uma certa muvuca. Câmeras, luzes e o Lázaro Ramos que ressuscitou minha escrita. Estavam gravando alguma coisa por lá. Havia gente em torno, mas o ator global estava isolado falando, provavelmente, o texto decorado. Ali diante daquele ser humano não consegui captar nenhuma alma. Toda aquela dinâmica televisiva mostrava cenas marcadas e arranjadas. Perto das janelas e seus mistérios, pareceu-me que a tevê era uma grande concorrente para os olhares de concreto, mas ao invés de me levar às almas , me levava a fantasmas. Não bobiei, não estava disposto a render homenagens nem às almas, nem aos fantasmas. Um biker não pode parar.
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