Para falar a verdade, achei até meio esquisito ou de mal gosto, mas fiquei com uma puta vontade de, não apenas sair de bike, nesse feriadão, como também escrever um texto sobre finados . Coisas do além...além de não ter o que fazer...
Pensei em dar uma volta por um dos portões do inferno, ou melhor pelo campo santo, evitando adentrar os mistérios de Hades. Alguém tinha deixado o seguinte título inspirador no seu msn “fui ao cemitério da consolação” e daí surgiu a pauta. Saí de casa fazendo o mesmo trajeto usual para ir ao centro, atento ao fluxo da cidade que, aliás, se mostrava bem viva. O número de carros e pessoas na rua estava acima do normal se comparado com o domingo, dia que mereceria o título de finados ou, no mínimo, de entediados. Com tamanha movimentação, o dia dos mortos, como seria de esperar, exigia mais cautela.
Mas nem cautela nem susto poderiam descrever o que foi a bikeaventura. Adolescentes de preto, com manchas de sangue, rostos deformados, roupas rasgadas saiam das artérias que davam na Pça do Patriarca. Havia uma concentração de mortos vivos, espécie de Halloween in concert. Uma banda tocava rock pesado enquanto os zumbis, alheios à música, se espalhavam pela praça expondo suas chagas, marcas fakes de quem ainda não precisa levar a morte a sério ou foge do enfrentamento com a senhora das foices. Dei uma volta pela praça, parando para não atropelar nenhum pseudomorto na multidão de figurantes de Thriller . Só para constar, Mickel Jackson não estava entre nós....
Indo contra o fluxo daqueles que se divertiam com a morte, segui pelo viaduto do chá. A horda de zumbis continuava, mas de uma forma mais ordeira, algo bem improvável para aqueles que, nos filmes, não respeitam as regras dos vivos. Percebi o motivo: a vivacidade do mundo corporativo. Um cara esbanjando autoridade sem que tivesse qualquer insígnia para isso, controlava o trânsito de homens e de carros. De início não entendi nada. Dei meia volta para observar mais de perto e fiquei próximo do meio fio, na linha imaginária onde os carros tinham parado seguindo as instruções do guarda improvisado. Foi só por o pé no chão que o cara se dirigiu a mim: “Ei você aí, pode passar”. Disse que não queria, estava a fim de ver o que rolava. “Você é do elenco?” Essa pergunta e o fato de ver um homem vestido de zebra caminhando na minha frente, permitiu que compreendesse o que se passava: filmagem ou rapto do espaço público. “Então você fica aí, ok?” Caramba, onde ele achava que eu iria ficar. Confuso, observava a cena que parecia um verdadeiro filme de Fellini: zumbis passando obedientemente por um trecho da calçada, um homem que se achava dono do pedaço, uma zebra correndo entre os carros. “Ação”. Os carros e alguns figurantes contratados, vestindo terno e gravata sem qualquer mancha de sangue falso, começaram a se movimentar. Instintivamente, dei duas pedaladas. Foi o necessário para o diretor me chamasse atenção: “Agora você fica aí, se não você vai estragar minha filmagem, ok?”. Ficamos assim: ele com a vingancinha de quem não foi obedecido; eu com a raiva de quem poderia ter sacaneado. Cansado desse enredo, segui em direção contrária. Deixei o cara falando sozinho.
Queria algo mais real. Desci para o vale do Anhagabaú : a conferir o movimento “Acampa Sampa”, espécie de protesto pacífico contra o capitalismo. Jovens com barbas ralas estavam acampados no ventre do viaduto do chá. As barracas ocupavam exatamente o espaço corresponde ao do viaduto, nem mais nem menos. Me pareceram poucas diante do tamanho de revolta necessária para contradizer o sistema. Comparativamente, perdiam feio para os zumbis. Lembrava um filme de terror em que os bons mocinhos e boas moças, acampados, seriam ameaçados pelos seres deformados do subsolo com suas zebras...opa, onde entra a zebra mesmo? Melhor descrever isso de outro jeito: abaixo do fluxo de mortos vivos , atores, zebras e outros figurantes , jaziam placas que, deixadas entre as barracas, silenciavam dizeres contra o sistema. Não me pareceu uma cena mais real do que aquelas vivenciadas no círculo superior de uma viagem que estava me cheirando ao inferno de Dante sem o odor do enxofre.
Saí desse local em direção ao cemitério. Queria enfrentar a morte onde ela efetivamente mora com um pouco mais de concretude. Até o começo da Consolação, grupos dispersos de zumbis ainda podiam ser vistos. Ao me aproximar de um deles que se fechava em roda como se os participantes estivessem canibalizando uma presa, ouvi alguém dizer: deixa eu ver como fiquei! Uma adolescente pálida, com os olhos fundos, roupa sensual e coxas grossas se destacava. Tinha que reconhecer que nos dias atuais, se a morte não veste Prada, no mínimo, usa iphone.
Ainda com as pernas da menina na cabeça, cheguei ao cemitério, onde faria o teste derradeiro: entrar com a bike. Normalmente, burocracia e autoritarismo não combinam com esse meu meio de transporte. Hesitei, me aproximei dos funcionários da prefeitura e perguntei onde poderia deixar a magrela. “Pode entrar com ela, sem problema”, um deles falou para mim, mais preocupado em recolher "caixinha" de uma BMW. Tinha auxiliado o pobre motorista a entrar na avenida principal. Desci da bike e entrei na residência da paz, com a magrela ao meu lado. Havia um número razoável de pessoas, o que não chegava a prejudicar a movimentação dos visitantes, aliás, bem mais velhos dos que os zumbis do centro da cidade. Andei entre as lápides vendo e revendo estátuas cujos rostos baixos, encobertos pelas mãos, demonstravam o que deveria ser o réquiem para um dia dos mortos. Me senti bem em poder deixar a tristeza eterna para essas estátuas e, por alguns minutos, reparti com elas o sentimento de perda que exaltavam. Um pai com seu filho, ambos bem vivos, passaram por mim em cima de suas bicicletas. Os mortos pareciam mais condescendentes com o fluxo dos vivos. Depois da minha reverência, decidi que já era hora de voltar. Subi na bicicleta e voltei a pedalar.
No caminho, por incrível que pareça, topei com um baita congestionamento. Tive que subir na calçada. Estava na rua Higienópolis. Fila pra entrar no shopping. Me senti um pouco tonto com esse choque de realidade.
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