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Foto do escritorFernando Andrade

Nas Franjas da Cidade - parte I (outubro de 2009)

Atualizado: 23 de mar. de 2020

Franjas.

Substantivo feminino, cujo significado pode ser "arremate em beirada de tecido, em fios soltos segundo variados padrões". Lembro uma coisa que minha vó teimava em chamar de caminho de mesa, na verdade uma toalha feita de crochê que, pra meu espanto, não cobria 1/10 da mesa. A tal toalhinha era retangular. Nos lados mais curtos, havia fileiras de fios com os quais adorava brincar. Aqueles restos de crochê - fios avulsos -tinham algo do tecido e algo do vazio que a toalha tentava encobrir: fragmentos descontínuos. De uma lado, aqueles fios tinham a liberdade em estado bruto; de outro, traziam a vertigem de um material sem a forma e organização que o resto da toalha mantinha. Brincar com as franjas, mudando com os dedos a direção dos fios, era como brincar de um deus que moldava a criação como bem entendia. Diante daquele material obediente e maleável, não me deixava tocar pela vertigem do vazio da mesa, embora podia senti-la na ponta dos dedos.

Trajeto.

Por incrível que pareça, nesses últimos finais de semana, abandonei o Minhocão. Queria testar minha capacidade de pedalar por longos trechos. Fui, umas duas vezes, da minha casa até o primeiro pedágio da Rodovia Airton Senna ( ou será Trabalhadores?). Numa dessas pedaladas, reparei que depois do parque Ecológico do Tietê, havia uma estrada de terra que acompanhava o rio poluído. A estradinha, o mato, a ponte (sim, havia uma ponte velha!) e o rio pareciam combinações inusitadas que seduziriam qualquer bikerurbano. O que aquilo tudo estava fazendo ali, nas franjas da minha cidade?

Trecho resumido para quem pulou a parte anterior (aliás, totalmente dispensável).

Pretendia ir do bairro do Belém até o km 22 da rodovia Airton Senna, onde deveria pegar uma estrada de terra, passar a ponte e chegar até...sabe Deus onde.

Av. Celso Garcia até a Penha.

Na avenida, encontrei somente fragmentos do trânsito intenso que cosutuma vingar durante a semana. É verdade que disputei timidamente alguns espaços com carros e ônibus, mas os imensos vazios que o domingo abria no asfalto, me deram a liberdade e até a segurança para andar no meio da avenida. Solavancos à parte...puta delícia!

Marginal

No cruzamento abaixo do viaduto Aricanduva, virei em direção à Marginal. O trânsito, aos poucos foi ficando mais intenso, o que me obrigou a variar entre asfalto e calçada. Quase na esquina com a pista local, entrei num posto, passei entre as bombas de gasolina e já me preparava para sair em direção ao concorrido asfalto, quando dei de cara com aquelas bobinas felpudas utilizadas para lavar carros. A parafernália parecia desativada. Embaixo dos fiapos, vi dois meninos magrelos, sem camisa, brincando ou se banhando (?) com esguichos de água do lava a jato. Não pareciam ser funcionários, nem filhos dos funcionários ou do dono do posto. O que estavam fazendo ali? Com a pergunta na cabeça, percebi as franjas daquilo que não poderia explicar.

As superquadras da via local

Entrei na via local: muitos carros, alta velocidade e poucas saídas. Para ser exato, eram três que limitavam duas superquadras até o ponto em que a rodovia se livrava da cidade e mantinha em sua companhia unicamente o acostamento. Até chegar ao parque Ecológico, passei pela frente de um Motel, um muro; de um conjunto habitacional para pessoas de baixa renda, outro muro e outro Motel; de uma favela; de um hipermercado, mais muros e de uma megaconcessionária de carrros. Se havia alguma lógica nessa enumeração, não consegui captar. Filamentos de consumo, de sexo e de pobreza se misturavam e se separavam ao mesmo tempo.

USP leste

E por falar em enumeração sem lógica, seguindo a rodovia, eis que surgem as franjas do saber: um galpão pós-moderno, no meio do mato...

O fio da meada

Na altura da USP leste, virei à direita por uma rua paralela à rodovia e fui até o final. Estava diante de um terreno cercado e aberto ao mesmo tempo. Montes de uma terra preta davam ao lugar um aspecto sinistro. Atrás desses montes, começava a tal estradinha. Bateu o frio na barriga. Aparentemente, iria até uma espécie de favela. Sozinho? Iria amarelar? Bem, já que estava ali, poderia ir adiante só mais um pouquinho, passar ao menos pela ponte. Pra variar, nesses momentos em que me meto em roubadas, em que tento pegar o doce que está em cima do armário, digo pra mim mesmo: só um pouco mais. É claro que posso pegar o doce ou me ferrar. Oscilando entre a dor da queda ou a delícia da guloseima, avistei uma viva alma. Medo ou alívio? Nas franjas, é difícil saber onde está o abismo em que se pode cair ou onde estão os fios em que se pode agarrar. Com umas voltas de indecisão a mais, e orgulho a menos, decidi conversar com o caminhante:

-Oi, o senhor sabe se esta estrada volta a se juntar à Rodovia?

-É só seguir direto, você vai passar por uma curva e umas casas (frio na espinha), despois vai ver uma entradinha pros pimentas (bairro), aí é só virrar.

-(Disfarçando o medo) É perigoso?

-Você pode ver o que não quer (riso safado).

(Ver uma transa no meio do mato era bem diferente de ficar sem o que não quer, no meu caso, sem minha bike.) Rápido, devolvi o riso malicioso e disse:

-Perigoso por causa da bicicleta....Será que....

-Nunca conteceu nada comigo.

(Lógico, ele estava a pé e não numa Alfameq de 600 pilas. Me toquei de que nessa franja de diálogo a gente não ia se entender).

-Obrigado.

Bem, sem lenço, sem documento, celular ou relógio, fui. Que se danasse o medo, assim pensei reunindo forças e pedaladas. Passada a ponte, a curiosidade e o gosto do risco me levaram adiante, brincava com os fios da cidade. Fragmentos de árvores denunciavam o desmatamento: cena amazônica. Não demorou para que uma mata fechada engolisse a estrada. Meia hora depois, estava no meio do nada, enfrentando, heroicamente, atoleiros e mosquitos. A Airton Senna se distanciava cada vez mais de mim. Num ponto qualquer do caminho, um alambrado me alertava sobre a proximidade da civilização e da propriedade privada. Logo avistei, uma fábrica abandonada, rodeada por um córrego artificial que continha uma água cinza e malcheirosa. Um encanamento cruzava a estradinha e ia até outro prédio também abandonado. Atrás da tal construção, abria-se um campo verde e extenso formando uma paisagem inesperada. Impossível não parar, sem falar no argumento fisiológico: minha bexiga exigia um pit stop imediato. Parei, mijei, contemplei aquele lugar. Era como se a casa, o encanamento, o campo tivessem se organizado para que eu, e só eu, os visse. Satisfeito por esse furo de "reportagem", dei de cara com outro, no pneu da minha bike. Putz, não sabia que teria que pagar ingressso! "Caralho", no meio do nada, sem remendo, nem porra nenhuma, o que poderia fazer? Primeiro, esfriar a cabeça, depois fazer os cálculos. Deveria ser umas 16h, estava distante uns 4km do parque, ou seja, gastaria umas 2h a pé. Chegaria ao parque por volta das 18h, a tempo de procurar o quiosque em que se alugava bicicleta, onde com certeza haveria alguém para fazer o remendo no pneu.

A volta ou a aventura

Meus cálculos foram perfeitos, com exceção de não lembrar das dores na perna e de não contar com a falta de vontade do pessoal do quiosque em fazer o remendo. "Estamos sem cola" foi a desculpa que ouvi, tão esfarrapada quanto eu. Essa não colava (puta tracadilho tonto), mas o que poderia fazer, esfregar a bike no nariz do cara? Pelo menos, o mal humorado indicou que "lá fora" poderia encontrar um borracheiro. O "lá fora" se traduzia em mais 30 minutos de caminhada."Aí, bacana...não conserto pneu de bike não" disse um negrão suado e com cara de nenhum amigo. Dito assim, com tanta educação, a gente até entende. Comecei a pirar. Já me via caminhando mais uns 5 quilômetros, implorando em cada posto para que me permitissem deixar a bike ali, até que pudesse voltar para resgatá-la. Enquanto pensava mil coisas, um som estridente riscou meu ouvido...um trem. Alguém disse trem? Lembrei imediatamente que no metro, de domingo, era possível embarcar bikes. Será que o mesmo valia para o trem? Mais quinze minutos e descobri a resposta: SIM.

A volta foi uma história nostálgica à parte. Durante minha adolescência, esse era meu meio de transporte. Revisitá-lo assim, fazia dessa aventura uma espécie de volta no tempo.

Balanço

Pois é, galera. Não é dessa vez que poderei descrever com precisão o que vi nas franjas da cidade. Pelo menos, já é possível ter uma ideia do que significa pedalar onde a cidade se apresenta em fragmentos. Atravessando esses fios da cidade ou os seus vazios, tive certeza de que essa franja não era tão maleável quanto a da minha infância. Tocar esse ponto da cidade é estar preparado para uma vertigem que não fica só na ponta dos dedos...nem na ponta dos pés.

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