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Foto do escritorFernando Andrade

Nas franjas do invisível (abril de 2011)

É galera, mais uma postagem. Milagres acontecem. Afinal, nada melhor do que umas pedaladas pra espantar o tédio do domingo e o resto da ressaca da madrugada de sábado. Vou dizer, o resto do sábado rendeu. Foi aniversário de um grande amigo meu e pra, variar, cheguei um pouco atrasado, na verdade, tarde o suficiente pra não encontrar mais o próprio. O jeito foi afogar o atraso nos copos de chopps e evoé Baco.

Quando acordei, já tinha uma ideia fixa plantada na cabeça. Suar um pouco pra expelir o resto de álcool que ainda encharcava meus miolos e dar parabéns ao aniversariante ao vivo e a cores: visitá-lo.

Peguei a magrela por volta da 17h e me dirigi para a Vila Zelina. Tinha ido duas vezes na casa dele, logo não era certo que o encontraria com facilidade, mas o tema bastava para o resto da composição. O bairro, conhecido pela imigração lituana, russa e ucraniana, me surpreendeu logo de cara. Fui recebido com música típica que escapava de um bar da esquina: o mais puro samba. Tá certo que faltava cor no grupo de sambistas composto por mais brancos do que negros, mas o som musical não se ressentia das tonalidades mais fortes. Depois de passar por uma cena típica da época da imigração – moradores sentados na calçada -, subi uma discreta ladeira e alcancei o que deveria ser o alto de uma pequena colina da qual se podia avistar um vale e mais adiante prédios que denunciavam uma cidade. Uma ou duas? Sabia que em algum lugar daquele amontoado de construção jazia uma fratura que separava as duas cidades – São Paulo e São Caetano -, mas assim a olho nú, era difícil perceber a fronteira.

Mais a frente topei uma placa e uma certeza. A placa indicava que à direita iria para a outra cidade; a certeza confirmava a impressão de que não seria hoje que abraçaria meu amigo. Me perdi em uma das ruas que parecia ser a conhecida de outros carnavais. Na duvida, como dizia a Doly no desenho “Procurando Nemo”, continue a nadar, ops....pedalar. Resisti à queda e não segui as orientações da placa, tampouco me obstinei em tentar encontrar meu amigo.

As casas denunciavam um bairro de classe média sem muito luxo, aquela mesma que, segundo a constituição, tem acesso à moradia, alimentação, lazer, educação e saúde, de forma um tanto quanto suada, mas tem. A avenida que eu seguia espreitava São Caetano do alto. Estava outra vez, nas franjas da cidade, mas diferentemente da periferia dos cafundós da zona leste, ali a cidade não se esgarçava dando lugar a espaços vazios. Se havia algo de esgarçado, esse algo era o asfalto remendado e em petição de buracos ou valetas como se encontra no resto da cidade. Com mais atenção percebia-se o oco da existência explodindo ou em bares ou em igrejas que, num certo ponto começavam a pipocar. Num trecho em que as casas se tornaram mais humildes, contei 5 igrejas evangélicas numa mesma quadra, -longa quadra para parcos fieis que começavam a chegar. Não tinha ideia de onde estava até passar por um posto da polícia militar que, com a missão de ajudar e servir, informava, no letreiro, ser da Vila Alpina a curva em que me encontrava. Se continuasse, iria parar no crematório. Bom, achei melhor não; ainda não seria dessa vez. Virei à direita com a inevitável possibilidade de sair dos domínios da velha São Paulo.

A ladeira era habitada por casas simples que lembravam desenho de criança, com o sol, a árvore e quintal a reboque. Sabia que em qualquer ponto entraria em São Caetano, mas onde? Fui até o final da rua e cheguei a uma avenida de duas pistas. Fiquei confuso: já teria saído da cidade? Pedalei entre o sim e o não, procurando pistas. Adiante uma placa indicava o caminho para Santo André. O silêncio absoluto em relação a São Caetano era significativo. Deveria estar na cidade. Lembrei do primeiro desapontamento que tive com essas divisões geográficas. Quando era criança, fiquei acordado para ver o momento em que meu pai passaria pela divisa entre São Paulo e Paraná. Na minha imaginação, tudo iria mudar. Entraria num outro portal. Foi terrível. Uma ponte e a sinalização indicavam o outro estado, enquanto a natureza, alheia a minha vontade e a dos geógrafos, se mantinha a mesma. Não poderia dizer porque , ali, um estado terminava e outro começava.

Enquanto pensava nessas coisas, um tranco me tirou das sensações infantis. O pneu tinha furado. De novo, a bike parecia se rebelar quando eu ia para além da cidade em que ela andava tão à vontade. Se fosse místico diria que parecia até maldição. Apeei da bike e, apreensivo, passei por uma entrada que levava a uma espécie de favela. Do outro lado da avenida de duas pistas, um Shopping parecia alheio a qualquer problema, convidando às compras. Minha cabeça começou a mirabolar mil coisas. Não tinha metrô perto. Na mochila, eu trazia uma câmera sobressalente, mas tinha deixado a chave de boca em casa. Fudeu. Poderia ir até um posto ou um borracheiro. Passei por um posto: fechado. Poderia continuar a andar até o final da noite. Poderia deixar a bike no estacionamento do Shopping e depois pegá-la ou...No fim do “ou” e quase tendo percorrido, do outro lado da pista, o equivalente a frente do Shopping, eis que uma luz quase me cega, me tirando do caminho de Damasco. Era o letreiro da C&C. Isso mesmo, casa e companhia, onde ferramentas seriam, para mim, naquele momento, a companhia perfeita.

O Shopping compensava a falta de definição de fronteira da cidade. Passei por um portão, uma chancela e dois seguranças. Encostei a bike num poste, pus o cadeado rapidamente, antes que um daqueles caras viesse me dizer que era proibido. Entrei e saí com a tal ferramenta na mão. Tirei a roda, depois o pneu e câmera. Troquei. Na hora, de encaixar tudo de novo, uma maldita porca espanou. Tirei um parafuso de outro lugar e fiz uma pequena gambiarra, suficiente para voltar para casa. Voltei pela Avenida do Estado. O pneu estava meio torto e os carros passavam retos e rápidos. Um pouco de apreensão e algum tempo de pedaladas me devolveram a definição do meu apê.

Demorei pra tirar a graxa das mãos. Não reclamei . Depois de algum tempo e menos inocência, a gente descobre que o invisível também deixa as suas marcas.

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