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Foto do escritorFernando Andrade

O Sublime em “Claro Enigma”

Quando estava fazendo o material para o curso de Claro Enigma, eu me perguntava a todo momento: mas por que essa obra poética produz um efeito de admiração? Poxa, o poeta usa imagens banais, do cotidiano. Além disso, seu tema é amargo: uma angústia profunda. Uma das repostas, eu já conhecia, vinha lá de Aristóteles. O texto dele provoca uma certa cartase. A gente acompanha o horror do poeta e vai com ele, como diria o próprio Drummond até o enjoo.

Mas isso não dizia muito sobre o que estava no texto. O que faz com que aquelas imagens contrapostas provocassem o leitor? Bem, fiz essa pergunta no ano passado, pois estava produzindo um livro digital de análise da obra. Eis que, entre um texto didático e outro, tive que escrever algo estética, e lá fui relembrar Kant.

De repente, a ideia kantiana de sublime me fez ler a obra de outro jeito. Esse texto que vou apresentar, está no material completo de análise dos poemas de Claro Enigma, mas gostaria de apresentar essa reflexão assim separada do texto inteiro. Espero ajudar a quem não vê muita coisa em Caros Drummond a reconhecer sua beleza; e para quem já o admira, que consiga entender de onde vem essa sensação de estar diante de uma grande obra.

Immanuel Kant, um dos maiores filósofos do Iluminismo em um obra sobre estética, tentou definir o sublime. Para o filósofo, quando a mente humana se depara com alguma composição do extremamente grande, intenso, o entendimento humano falha ao perceber o objeto e resta a imaginação tentar reconfigurar a grandiosidade do fenômeno observado com a pequenez do indivíduo que assiste ao espetáculo.

Ele dá como exemplo, a paisagem de um mar revolto em um dia de tempestade. O mar batendo nas rochas violentamente provoca o terror do infinito. O que Kant diz para a composição da natureza pode ser aplicado às artes mais impressionantes e para a própria poesia de Drummond.

O poeta, para expressar sua angústia existencial, elabora imagens ou contrapõe cenas em que a distância entre o ilimitado e o finito se coloca produzindo uma sensação de desconforto e de admiração ao mesmo tempo. No poema confissão, o poeta fazendo um balanço da própria vida começa o soneto com a afirmação “não amei bastante meu semelhante”. Essa ideia será repetida até a última estrofe, onde o eu lírico oferece uma imagem imprevisível: “Não amei ninguém/ Salvo aquele pássaro – vinha azul e doido -/ que se esfacelou na asa do avião.”

A desproporção entre o pássaro e a asa do avião choca o leitor e imprime essa imagem na imaginação que ao mesmo tempo que fornece o prazer de conciliar dois elementos díspares, deixa circular a sensação amarga da tragédia que não tem qualquer importância para o cotidiano das pessoas.

Esse recurso de aproximar objetos inesperados numa combinação sublime é um dos traços mais fortes de Drummond, mas há um poema que essa sensação de grandiosidade que até cala o espectador é melhor exemplificado, no poema que é obra-prima do livro, “A máquina do mundo”.

O poeta, retomando Camões, vale-se da referência a tal máquina feita pelo eu lírico de Os Lusíadas. Já no retorno da viagem às Índias, a deusa Tétis (deusa da sabedoria) resolve recompensar os portugueses e mostra para Vasco da Gama a máquina do mundo. Refere-se ao sistema imaginado por Aristóteles para explicar o movimento celeste.

No poema que dialoga intertextualmente com a literária camoniana, o eu lírico caminha pelas estradas de Minas quando é abordado pelo Máquina.

“E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.”

Esses últimos versos retomam a imagem do eu lírico resignado que já havia aparecido no primeiro poema do livro, “dissolução”. A máquina do mundo aborda o eu lírico que caminha solitário pela estada de Minas no momento da vida em que ele já tinha desistido de entende-la (“para quem de a romper já se esquivava”) e até mesmo chorava só de pensar em ter de fazer isso (“só de o ter pesando se carpia”).

Mesmo assim, a máquina se abre para o poeta de forma imponente (“Abriu-se majestosa e circunspecta,/sem emitir um som que fosse impuro/nem um clarão maior que o tolerável”). Além de abrir-se, convida a “quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera”. O convite é irrecusável. Há um discurso direto, no qual a máquina faz sua oferta: “O que procuraste em ti ou fora de/ teu ser restrito e nunca se mostrou,/...olha, repara, ausculta: essa riqueza/...sublime e formidável, mas hermética,/... abre teu peito para agasalhá-lo.”

A partir dessa oferta, o eu lírico passa em revista todos os grandiosos segredos do universo, desde edifícios e pontes até os recursos da terra dominados pelos impulsos da paixão passando pelas plantas e pelos minérios. Esse esplendida cena, escapa a imaginação, que tenta integrada a partir do contraponto do mineiro que anda devagar por uma estrada qualquer.

A decisão é comunicada ao leitor com um “mas”. O eu lírico reluta em aceitar o convite, o apelo faz eco a “defuntas crenças”, coisa que não angustia mais o caminhante. Ele abaixa os olhos, “incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta”. A maquina se retrai.

“A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.”

O poeta recolhe a sua insignificância diante de tal infinita possibilidade. A distância entre o ser humano comum e a grandiosidade do que talvez seja o mundo, faz essa pequena narrativa poética alcança o sublime de um ser humano perdido num mundo indecifrável, aliás ideia que se anuncia no próprio título da obra.

O leitor nesse momento é jogado de uma ideia para outra. Por uma lado reforça-se a ideia de “mundo, vasto mundo”, por outro, a insignificância do poeta e de cada leitor, fica mais patente. Sobre a angústia. Sobra a beleza de viver nesse mundo que pode ser apreciado pelo espanto que ultrapassa a imaginação de qualquer leitor.

Esse é a montanha russa que eu experimento quando leio Drummond. Deixe-se levar por ele. Vale a pena.

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