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Foto do escritorFernando Andrade

POMPA E CIRCUNSTÂNCIA (Final de abril)

No momento que começo a escrever esse blog, o título aí em cima parece uma ironia. O cotidiano, esse terrível inimigo, invadiu o projeto. O volume de trabalho, as obrigações os etceteras todos, me fizeram questionar um pouco esse projeto de um homem só. Nesse último domingo de abril, resolvi sair de bike, sem animação de d´antes. Resolvi juntar o útil ao desagradável. Tinha ganhado um presente e uma tarefa. Como a camiseta era maior do que meu físico, precisava trocar a mercadoria - isso era o útil. Tinha que pôr o pé em um Shopping qualquer da cidade- ganha um doce quem adivinhou que isso era o desagradável (rs). Resolvi ir de bike. Fazendo isso poderia registrar o uso da bike como meio de locomoção e não somente como meio de lazer.

Horário de saída: 16h 38...

Temperatura: agradável, dia ensolarado, mas com ar um pouco gelado típico dos dias de outono paulistano.

Detalhe importante: o Cortinthians jogava uma partida decisiva contra o Santos.

Itinerário: do Bairro do Belém até o Shopping Norte, em Santana.

E no meio do caminho tinha...

O jogo, ou melhor a "pelada" . Andando de bike, propus para mim mesmo tentar perceber os sinais da partida na cidade. Em outros tempos, um clássico como esse seria coisa de parar a cidade. Nestes tempos de cartolas e violência de torcida organizada, o ímpeto dos torcedores parece ter se arrefecido (nossa, engoli o dicionário).

No trajeto inicial, observei os bares velhos conhecidos meus, onde migrantes nordestinos se juntam aos domingos. Os bares hoje, estavam tingidos de preto e branco, deixando claro que o jogo estava em andamento. Num deles, a televisão tinha sido colocada para fora, os torcedores se reuniam em volta de mesas e olhavam distraidamente para a tv, enquanto ouviam o som de um axé qualquer. De longe, parecia uma combinação esquisita, um balé; jogadores dançando no campo uma música bem diferente da que rolava alto no carro estacionado ao lado. Fiquei sem saber se o divertido era ver o jogo ou ouvir a música; parecia que ninguém queria perder os dois prazeres. Até ali, considerando o placar entre futebol e música, o jogo parecia empatado.

Quando virei na Av do Estado, os sinais do jogo desapareceram. Até mesmo os sinais negativos. Em dia de decisão de campeonato, supõe-se que o número de veículos diminui. Não era bem essa impressão que tive. O domingo me dava sinais de que continuava na mesma toada de outros tantos, sem qualquer circunstância especial.

Estacionamento de bike

-Ei aí, não...Ouvi um grito do carinha responsável pelo estacionamento de motos, lugar que procurei para estacionar a bike.

-Mas tem uma ali no alambrado...Retruquei.

-É que o cara chegou muito cedo e ninguém falou para ele que não podia.

-Onde eu deixo a minha bike, então?

Já sabia que o Shopping é o lugar por excelência dos espaços demarcados: aqui pode, ali não; nessa área fica a praça de alimentação, naquela, as lojas etc. Estava ali diante do templo da racionalidade prática que o comércio exige. Portanto, cada centímetro é calculado e utilizado para a satisfação do cliente e para o lucro dos proprietários. Nessa equação prá lá de matemática, esperava ver onde uma bike se encaixaria. Para minha surpresa, o rapaz me indicou um lugar que estava sendo preparado para receber as magrelas. Os reflexos da discussão do uso da bike como forma de combater o "efeito estufa" chegava de alguma forma ali. Providenciavam um pequeno espaço pelo qual não se cobrava nada e um imenso pátio para os carros pagantes e poluidores. Comecei achar que a intensão era desestimular os usuários de carros. Será que estou sendo muito ingênuo? Como resposta a essa campanha, havia ali um número significativo de bikes: 2.

Onde estavam os torcedores?

Definitivamente, hoje não era um dia de apostas. Tinha quase como certo que devido ao jogo, o shopping estaria vazio. As lojas até estavam um pouco desertas, mas os corredores vomitavam gente de fazer inveja a um estádio de futebol. Tentei cumprir minha tarefa o mais depressa possível e sai de lá a tempo de ver nas ruas as consequências do final do jogo. Antes, parei para um cafezinho. Passei por um ala de restaurantes. A área das mesas se separava do estacionamento através de placas de vidro. Dava para observar a cidade. Olhei para o horizonte e notei um céu claro limpo, com formações de nuvens densas nas bordas. Me pareceu uma cena surreal. Agora tinha outro motivo para pedalar: queria chegar a algum viaduto que me permitisse olhar para a cidade emoldurada por tais formações de nuvens no momento em que o sol começava a se por. Tomei rápido meu café e voltei a minha bike. O jogo àquela altura estava nos seus minutos finais.

A POMPA

A partida terminara, com certeza, pensei enquanto destravava a bike, mas afinal quem ganhou o jogo? Não perguntei para ninguém. Queria ver se como biker, poderia notar nitidamente o que estava ocorrendo na cidade sem precisar de outro recurso a não ser a velocidade e a observação. Já em movimento, pela avenida principal, um taxista buzinava festejando a vitória, mas vitória de quem? Virei numa rua secundária, e andei pelos meandros da Vila Guilherme. Passei por alguns bares: tímidos não me indicavam o campeão da pelota. Já começava a imaginar que, para minha alegria, o Corinthians tinha sido humilhado.

Numa esquina inesperada topei com bandeiras corinthianas. Estavam na mão de um ambulante. Mais a frente, uma torcedora balançava timidamente uma flâmula preto e branca com uma incrível apatia. Ditante da falta de sinais evidentes, resolvi me ater no cenário de outono.

Nuvens altas, arredondadas como se fossem bolas de sorvete a se acumulavam umas sobre as outras emoldurando o horizonte, mas não todo o horizonte, apenas uma pequena parte. Não se podia perceber o encontro entre nuvens e terra, pois prédios elevados se interpunham uns na frente dos outros interrompendo o ollhar. Diante daquela composição, tinha-se a impressão de que as montanhas enormes de nuvens, a qualquer momento, iriam desabar sobre aqueles prédios que não chegavam a um terço da altura das nuvens. Assistia ao espetáculo da cordilheira de nuvens. O sol se punha rapidamente e precisava me elevar mais para observar o fenômeno. Acelerei as pedaladas, começava o lusco fusco do ocaso. Entrei finalmente na avenida que dava para uma ponte sobre o rio Tietê. Dali, poderia até parar para ver a imagem perseguida. A única dificuldade, agora, era esperar que o fluxo de trânsito da alça que dava acesso à ponte para quem vinha da Marginal diminuísse.

Ao parar ali, comecei a ouvir um som estranho. Sem dúvida, era música! Uma música metálica, com alguns sons desafinantes. Seria a comemoração pela vitória? O som vinha de um espaço gramado entre a Marginal e e alça de acesso. Como assim? O que poderia vir daquele tipo de espaço vazio, inútil, como um resto do que a estrada não pôde utilizar? Virei na alça de acesso andando na contramão. O som se tornava mais forte, e algumas árvores atrapalhavam a visão da cena que começava a se delinear. Homens e adolescentes estavam alinhados tocando instrumentos como se fosse uma banda. Era um banda! Estavam, provavelmente, ensaiando. Na falta de um lugar melhor, usavam aquele espaço. Resolvi não me aproximar muito, poderia assustá-los. De longe, na penunbra, adivinhei rostos redondos, pareciam bolivianos. Levavam a sério, uma espécie de marchinha que deveria ser tocada em alguma festividade.

Lembrei da música "Pompa e Circunstância". A cidade no final do meu passeio, de novo, me apresentava algo inesperado. Quando finalmente, cheguei ao ponto mais elevado da ponte, o escuro já tomava conta do céu. Voltei ao som imaginário, ora da sinfonia relembrada, ora da marchinha boliviana. Não parei para me certificar nem do resultado do jogo, nem do que ocorria naquela alça de acesso, preferi ficar com as impressões duvidosas, mas cheias de fantasias, a ter a certeza de uma explicação talvez sem graça demais.

CIRCUNSTÂNCIA

Falando em algo sem graça demais, chegando em casa descobri que o Corinthians tinha vencido a partida.

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