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Foto do escritorFernando Andrade

Recomeço: natal em São Paulo? (novembro de 2015)

Faz tempo que não posto nada. Na verdade, devo confessar: saí de bike e cometi esse texto, depois de anos, literalmente. Desde que postei minha última aventura, muita coisa mudou em São Paulo. Enfrentamos a crise hídrica, o centro da cidade ficou mais decadente, ciclovias rasgaram as vias urbanas, a economia entortou e minha pena enferrujou...ah, e minha bike também. A cada brecada, um som seco soava pelo caminho como sirenes anti-bombas; quase terrorismo. Consegui até mesmo assustar um mendigo, que me perguntou, ao ouvir a freada próxima, se eu queria matá-lo do coração. Fiquei pensando se ele não teria outros motivos para morrer, até mesmo o motivo mais óbvio: só corre o risco de morrer dessa causa mortis quem tem um órgão funcionando. Será que o barulho do meu freio é o maior dos males do meu pobre mendigo? Ou ele estaria encantado pelo clima natalino?

Na verdade, São Paulo não é exatamente uma cidade que se renda a qualquer regularidade de clima, basta lembrar que saímos de um ano de seca para um dezembro chuvoso, mas clima natalino é uma metáfora, nessa cidade profícua em criar metáforas, não necessariamente belas. Devo dizer que pedalando Viaduto do Chá afora, realmente topei o tal espírito de alguma coisa natalino. Quando saí da esquina da São Bento, virando na praça do Patriarca, notei uma fila de ônibus parados. Até aí, nada de novo, fila, ônibus e imobilidade não são novidade em terras tupiniquins. Quando cheguei mais perto percebi que eram ônibus-trenós. Estavam enfeitados com luzes em volta das janelas e portas, além de terem outros adereços luminosos que lembravam o natal; sem contar o gran-finale. Passando ao lado de um dos coletivos, vi um papai Noel motorista e quase caí da bike quando uma mamãe Noel cobradora saltou na ciclovia. Daí observei melhor, eram vários ônibus tomando todo o viaduto, eram vários Noéis tomando a via e sendo fotografados pelos celulares conspícuos que brilhavam nas calçadas.

Sinceramente, me parecia uma cena de mal gosto: trocar a cena infantil do bom velhinho que leva presentes e sorri para as crianças, por profissionais de trânsito vestidos de vermelho, o que necessariamente lembra os faróis da imobilidade. A possibilidade desses Noéis serem tocados pelo mal humor do trânsito paulistano e carregarem, em vez de prendas, magotes de gentes para ofertar àqueles que se beneficiam desses trabalhadores, dava o tom de farsa à cena sem que os Noéis percebessem o que representavam. As cores sejam as dos ônibus, sejam as das roupas, não chegavam a empolgar e pareciam submergir no cinzento chuvoso da tarde. Apesar disso, todos sorriam, era um domingo e não um dia de semana, o dia do senhor permite essas brincadeiras.

A cena do mendigo veio logo depois; os pingos da chuva, na sequência; e a sensação de ser criança veio junto. Andar de bike na chuva em dias de verão era uma aventura e tanto quando era criança. Lembrança. A minha casa ficava numa rua de terra e conforme ia pedalando, os respingos telúricos que escapavam de forma centrífuga dos pneus iam traçando um risco na minha roupa que começava nas costas passava pela virilha e terminava na barriga. Resultado: roupa suja no cesto e uma bronca materna. Aumentei a velocidade e brinquei de criar o mesmo risco, mas minha bike negou essa vertigem infantil, a roupa ficou molhada sem risco e sem memória. Depois de algum tempo nessa brincadeira com o tempo, resolvi voltar. Estava escurecendo: passaria de novo pelos trenós?

É, eles ainda estavam no viaduto. Fazendo o quê, até agora não tenho a menor ideia. Talvez estivessem me esperando...Assim ao sabor da noite, eles ganhavam outra magia, outras cores. Eram realmente belos. Quem poderia imaginar que ao toque de Nix, a deusa da noite, aqueles simples e feios coletivos ganhariam novos ares? Lembrei imediatamente de um poema de Mário de Andrade no qual o poeta dizia que a neblina de São Paulo não deixava ver as diferenças sociais e pedia para que tal empecilho saísse da sua vista. A neblina há muito abandonou São Paulo, restou a noite que insiste em apagar as diferenças e feiúras de São Paulo. Contudo, diferentemente do poeta, imploro para que a noite fique. Talvez os tempos sejam mais bicudos, talvez não, mas uma coisa é certa, voltei a ser criança naquela iluminação natalina: a ideia de farsa e o som do breque desbotaram por período de tempo suficiente para sentir de outro jeito meu espaço urbano.

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